11 maio, 2007

A Verdadeira Noviça Rebelde

Se hoje é possível rir com o cinismo com que “Viridiana” trata a religiosidade, na época em que foi lançado sua iconoclastia incomodou. Era o início dos anos 1960: época em que, paradoxalmente, épicos bíblicos como ´´Os Dez Mandamentos´´ e Ben-Hur´´ eram venerados e figuras como James Dean eram alçados à categoria de ícones de uma juventude que se identificava com a contestação, mesmo que de forma ainda ingênua e superficial, dos padrões morais e de comportamento tradicionais. Foi dentro desse contexto que o ácido e contundente filme de Luís Buñuel foi recebido, chegando a ser aclamado por uns e vetado pelo Vaticano que o acusou de difamar o catolicismo. Independentemente da polêmica gerada, “Viridiana” pode ser interpretado uma fábula de arrependimento. Mas não do arrependimento que nasce da culpa pecadora, e sim, da beatice.

Sinopse: noviça é enviada para visitar seu tio convalescente em remota fazenda. Por ter assombrosa semelhança com a antiga esposa do velho, ela passa a ser assediada por ele. Escandalizada, a protagonista faz de tudo para ir embora, mas acaba por provocar uma tragédia. Para amenizar a culpa, passa a ajudar mendigos na casa que dividirá com seu primo Jorge, que questiona sua fé. O filme foi gravado em 1961. Direção: Luís Buñuel. Com: Silvia Pinal, Fernando Rey, Francisco Rabal.

A personagem do título é uma noviça atormentada. Seu olhar derrotado, rosto tenso e o desalento com que menciona um certo mundo “lá fora” acusam que sua ida ao convento não foi vocacional. Foi uma fuga. Mas para Buñuel importa muito menos o que a afastou do que a constatação de sua melancolia. Quando a madre superiora a avisa que seu tio convalescente deseja vê-la, Viridiana não demonstra muito ânimo em atender ao pedido. É o suficiente para que seja notada em sua personalidade uma orgulhosa pulsão de negação. A noviça não é uma asceta. É uma mulher desesperada.

Então a protagonista é obrigada a morar na casa de seu tio. A partir daí, a película assume uma característica típica dos filmes das décadas 1950 e 1960: a rapidez nas reviravoltas. Na tela, as situações seguem uma narrativa compacta e apressada que simula uma ausência de transições. Os diálogos entre Viridiana e seu tio transitam da ternura à hostilidade em uma velocidade, hoje, admissível apenas no teatro. Apenas a estudada lentidão de um Stanley Kubrick (2001 – Uma Odisséia no Espaço) viria a dar ênfase à sutileza e à longevidade das cenas.

Mas se por um lado as cenas parecem bruscas, por outro são costuradas por falas rascantes. Os personagens de Buñuel, que co-escreveu o roteiro, disparam suas inseguranças com ácida sinceridade. E isso em um diálogo entre uma beata angustiada e seu velho tio recluso e pervertido – ambos arredios – é um clamor ao desencanto. Nesta obra, não há tempo para longos silêncios poéticos, reflexões ao luar ou closes introspectivos. O filme tempera as falas rápidas das comédias com certo amargor cético. Pois antes de tudo, “Viridiana” é um filme irreverente.

Não é preciso ir muito longe para concluir isso. Iniciar a obra com o ´´Hallellujah´´ de Haendel não foi meramente ilustrativo: o tema épico e grandioso do compositor alemão é quase que um convite para que se ria da pequenez da complicada Viridiana. Os lúgubres trechos de réquiens e missas fúnebres a cada passo do tio poderiam dar-lhe retrato mais trágico. Mas eis que imediatamente surge um toca-discos. E logo atrás dele, alguém que o desliga. Mais uma vez, não há espaço para grandes reflexões. Consequentemente, não há tempo para o aprofundamento de cada personagem.

Por isso não é possível sentir nenhum tenso prenúncio da tragédia que se abaterá sobre tio e sobrinha. Ela simplesmente acontece, de forma dura e desprovida de um valor moral que lhe confira um sentido último. Na verdade, o ápice trágico é despido de qualquer intenção catártica para desempenhar um papel meramente narrativo: o de encerrar a primeira parte da trama e sugerir que, na segunda, se assistirá a uma Viridiana ainda mais culpada, perturbada e beata. Em conflito direto com o mundo circundante.

Esse mundo é representado pelo primo Jorge, com quem dividirá a mesma casa. Cínico e hedonista, ele percebe que há algo em falso na reclusão purificadora de sua bela prima. Enquanto ele arruma a fazenda do pai com mãos de ferro, a agora ex-noviça traz cancela a dentro toda a sorte de mendigos e degenerados. E é curioso constatar como Buñuel em nenhum instante retrata a miséria absoluta como fraqueza, mas como um estado altamente vulnerável à corrupção. No final das contas, o desespero dos leprosos e famintos sitiará a rica fazenda e, sobretudo, a fé da ingênua freira.

Passado o susto, a câmera foca Viridiana sentada na cama a fazer algo que jamais lhe ocorreu: acariciar seus cabelos soltos. Percebendo a si mesma, a protagonista está assinando sua rendição diante do mundo dos homens; o mundo de seu primo. ´´Eu sabia que jogarias o tute comigo, prima”, diz o pervertido Jorge diante de sua parenta cabisbaixa e maculada.

É uma bela resolução para uma trama complexa e apressada, mas coesa do ponto de vista ideológico. “Viridiana” talvez não seja a obra-prima absoluta que alguns desejariam que fosse, mas é um chocante retrato de uma anti-Maria-Von-Trapp antes mesmo de “A Noviça Rebelde” ser lançado. E foi ao fixar um olhar cínico sobre os cânones antes mesmo que as pessoas percebessem sua ingenuidade e ao rir da religiosidade com fina perversão que “Viridiana” antecipou-se à própria época.

Por Igor Matheus

Para maiores informações, acesse:

http://es.wikipedia.org/wiki/Viridiana

http://www.alohacriticon.com/elcriticon/article1267.html

Foto: http://faculty-staff.ou.edu/L/A-Robert.R.Lauer-1/span4313cap15.html

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